A texto abaixo é de Arthur Pavezzi, e já tem alguns dados desatualizados, até porque já tem uns 10 meses que foi publicado, mas segue absurdamente atual. E o cerne do que ele diz está no título que coloquei nessa postagem: o BACEN precisa voltar ao Estado.
Sim, mas é voltar ao Estado, não ao governo, e muito menos permanecer cooptado pela casta parasita que se apossou dele nos últimos 30 anos. E não, isso não se deu aos poucos, mas abruptamente com o desastroso governo de Fernando Henrique Cardoso, e apenas foi sedimentado, governo após governo, culminando com a "autonomia" dada por Temer. A última é que querem transformar o BACEN numa empresa submetida ao Congresso (se isso acontecer será o maior dos desastres).
Então, o que eu digo quando falo de retornar ao Estado, é que o BACEN precisa estar atrelado a um projeto de desenvolvimento técnico-industrial e social para o país. Isso junto com o BNDES e teremos as ferramentas básicas para desenvolver as potencialidades da Nação brasileira.
Claro que uma série de outras ações também precisarão de implementação, mas tudo isso faz parte de um projeto do tipo que mencionei acima. O problema é que precisamos de todas elas para que qualquer projeto seja viável e possa ser implementado. Qualquer parte faltando e teremos no máximo os voos de galinha que temos visto. Detalhe é que será cada vez mais curtos e mais baixos, afinal de contas, a galinha está cada vez mais velha.
Após 3 anos de autonomia administrativa, a relação entre o Banco Central e a União volta ao debate com a PEC 65/2023, que propõe autonomia técnica e orçamentária, transformando a autarquia em empresa pública sob “supervisão” do Congresso Nacional.
A motivação por trás da proposta é digna de uma uma república de banana: segundo Campos Neto, que tem se manifestado publicamente a favor da PEC, tal mudança é um “passo natural”, essencial para a “modernização” do Bacen, e que “90% dos demais países que possuem um Banco Central independente também têm autonomia orçamentária” (sic). Em miúdos: o sistema financeiro internacional gosta assim e o Ocidente faz dessa forma, então, como bons vassalos dos senhores do mundo, devemos acatar às suas ordens.
A mudança de hierarquia, colocando o Bacen sob “tutela” do Congresso, mostra uma clara tentativa de parlamentarização do Brasil, esvaziando o Executivo e enfraquecendo a Presidência da República. É uma situação tenebrosa. Na prática, já vivemos em um sistema misto de parlamentarismo acanhado e juristocracia. Tirar do Poder Executivo a autarquia responsável pelas políticas monetária e cambial – ainda que, na prática, o Bacen já seja independente desde 2021 – é um ataque à própria Constituição.
A Advocacia-Geral da União (AGU), o Sindicato Nacional dos Funcionário do Banco Central (SINAL) e o Sindicato dos Servidores Públicos Federais no DF (Sindsep-DF), entre outros, se manifestaram (com razão), contrários à PEC. Entre os problemas apontados estão: 1) os servidores atuais terão nenhuma garantia de seus direitos, e os que estão se aposentando ou já aposentados podem perder seus benefícios por mero ato interministerial; 2) o texto da PEC concede poderes e prerrogativas excessivas, com a possibilidade até de multar instituições, indo muito além das obrigações de uma empresa pública; 3) o Banco Central opera com recursos que são patrimônio do Povo Brasileiro; e 4) como muito bem apontado pela SINAL: “não há como ignorar sua condição fundamental [do Bacen] de instituição típica de Estado, incompatível com a sua transformação em empresa pública”.
Pois bem, vamos à questão dos recursos públicos utilizados pelo Bacen. O principal instrumento de política monetária hoje no Brasil são as operações compromissadas – compra e venda de títulos públicos junto ao mercado com compromiss⁶o de revenda/recompra futura no curtíssimo prazo, geralmente overnight (um dia útil).
Através dessa operações, junto a outros mecanismos, o Bacen intervém para que os juros se mantenham no patamar estabelecido pelo Copom para a SELIC (atualmente em 10,5%), e os bancos utilizam as operações compromissadas principalmente como forma de diluir risco. Com risco quase inexistente, rendem em juros o valor da SELIC em relação ao seu colateral, os títulos públicos. Investimento altamente lucrativo e de risco zero. O sonho de todo rentista. O valor movimentado em operações compromissadas é, em média, R$2 trilhões por dia.
Com tamanho montante em títulos da dívida utilizados pelo Banco Central, é impossível argumentar que não há um componente monetário como parte relevante da dívida pública do Brasil. Ou seja: controlar o componente fiscal, seja por gastos ou tributação não é suficiente para “estabilizar” a dívida. Um Banco Central com orçamento independente e desatrelado do Executivo resultará em mais motivos de disputa na eterna queda de braço entre Congresso Nacional e Presidência da República. Que vantagens ou ganhos temos para o Brasil ou o nosso sistema financeiro? Nenhum.
De acordo com a justificativa da PEC, os autores que “o centro da proposta consiste no uso de receitas de senhoriagem para o financiamento de suas despesas. Entende-se aqui por senhoriagem o custo de oportunidade do setor privado em deter moeda comparativamente a outros ativos que rendem juros.” Afirmam, também, que o uso da receita de senhoriagem (sic) para financiamento das atividades do Banco Central está alinhado a procedimentos adotados em países “centrais” do mundo (sic).
Completo desconhecimento do assunto. A senhoriagem não diz respeito à autoridade monetária, mas à emissão de moeda, pois é a receita obtida pelo Estado a partir da emissão de moeda – formalmente, a variação da base monetária (M1 ou M2) descontando-se os custos de emissão/produção e a inflação do período observado. Além disso, vemos aqui que todo liberal que defende essa PEC está defendendo a impressão de dinheiro (“inflação!!”, como eles mesmos dizem) para financiar as atividades do Banco Central.
O problema maior, porém, vem das peculiaridades do nosso sistema financeiro. Destarte, o Brasil é, de longe, o país que mais utiliza operações compromissadas ou similares, e um dos que mais faz rolagem da dívida, devido, em grande parte às operações de curtíssimo prazo. Não obstante, as reservas bancárias no Brasil são remuneradas, justamente devido ao uso excessivo das compromissadas como mecanismo de controle da taxa de juros. Ou seja: a moeda rende juros.
Há, também, a implicação óbvia advinda da própria justificativa da proposta: ao se colocar a senhoriagem (ou operações compromissadas, de redesconto, swaps cambiais, ou qualquer outro meio que seja) como forma principal de financiamento do Bacen, qual será a atuação da empresa? O Banco Central agirá para cumprir seus objetivos – assegurar a estabilidade de preços, zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego – definidos pela própria Lei Complementar nº 179/2021, que instituiu a “independência” da autarquia; ou para maximizar suas receitas? É bem evidente que as duas situações não se sobrepõem perfeitamente (eu diria que são praticamente opostas), porém a PEC não menciona esta questão, possivelmente porque seus autores sequer raciocinaram sobre.
E quem se beneficiaria com a aprovação desta emenda? Certamente não o Povo, nem o Estado. Apenas os banqueiros, rentistas e congressistas têm algo a ganhar com esta PEC: seja dinheiro, poder ou ambos.
A PEC 65/2023, ao propor uma autonomia orçamentária para o Banco Central, levanta questões fundamentais sobre a relação entre Estado, Povo e o mercado financeiro. Em um cenário onde o Bacen poderia atuar para ganhos próprios em detrimento de suas funções e do bem comum, o conflito de interesses se torna eminente. Mais do que “modernizar” a instituição, a proposta parece servir a interesses específicos, negligenciando os diversos prejuízos para os trabalhadores comuns e para a Presidência da República – posição democrática por excelência.
Num momento de desdolarização, de organizações alternativas, de consolidação e expansão dos BRICS, de questionamento da unipolaridade e de ascensão (ou retorno, como bem pontuado pelo estes dias) da multipolaridade, nos alinharmos às práticas financeiras e político-institucionais do Ocidente é um erro estratégico e geopolítico, extremamente contraproducente. Precisamos reafirmar a nossa soberania, não entregá-la numa bandeja de prata. Se, de acordo com Campos Neto, quase todos os Bancos Centrais mundo afora que são independentes (leia-se: submissos às exigências do mercado) também têm autonomia orçamentária, que seja: então nosso Bacen voltará a ser 100% dependente do Estado, como nunca deveria ter deixado de ser.
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