terça-feira, 13 de novembro de 2018

Pastor tem que liderar, mas sobretudo proteger

Excelente artigo. Vale a leitura, porque explica parte do que acontece com o Brasil de hoje. A Bíblia distorcida.


Sobre pastores e rebanhos nos agitados tempos eleitorais

por Magali do Nascimento Cunha — publicado 12/09/2018 17h00, última modificação 12/09/2018 11h09
O cristianismo e a Bíblia não podem servir de escudo para os “profissionais da violência
A figura do pastor é muito destacada na tradição cristã. No contexto rural da Bíblia, o pastoreio de ovelhas era atividade importante para a sobrevivência. O rebanho alimentava o povo e também fornecia lã para tecer roupas e tendas.
Além disso, a ovelha era um dos principais animais do sistema religioso vigente. O sangue era instrumento para perdoar pecados, limpar culpas, instituir a paz, ofertar a Deus.
Ser pastor ou pastora, naquele contexto, era tarefa considerada como das mais destacadas: cuidava-se de um animal muito relevante para a sobrevivência e para a prática religiosa.
O bonito era que a importância e a fragilidade das ovelhas geravam apego nos pastores. Cuidar significava proteger, tratar os ferimentos, defender dos perigos, buscar quando alguma se perdia do rebanho. Em retorno a esse cuidado, as ovelhas também se apegavam aos pastores, seguindo-os fielmente, reconhecendo até mesmo a voz.
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É neste sentido que, nos textos da Bíblia, os governantes da nação eram chamados de pastores. Eram responsáveis por guiar a vida do povo, protegê-lo, cuidar dos bens dele e ser os guardiões da justiça.
E Deus era apresentado como o Verdadeiro Pastor (como no Salmo 23), o modelo de pastoreio, dedicado ao cuidado, com poder e carinho, com vigor e ternura.
Por isso os profetas da Bíblia cobravam de governantes e religiosos quando não cumpriam o papel de pastores. O profeta Jeremias, por exemplo, criticou religiosos e a família real do seu tempo:
“Assim diz o SENHOR: Executai o direito e a justiça e livrai o oprimido das mãos do opressor; não oprimais ao estrangeiro, nem ao órfão, nem à viúva; não façais violência, nem derrameis sangue inocente neste lugar. (...) Mas os teus olhos e o teu coração não atentam senão para a tua ganância, e para derramar o sangue inocente, e para levar a efeito a violência e a extorsão. (...) Ai dos pastores que destroem e dispersam as ovelhas do meu pasto! diz o SENHOR” (Jeremias 22.13 a 23.3).
Mais tarde, Jesus de Nazaré deu seguimento à visão dos profetas e lamenta a situação de abandono do povo:
“E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades.  Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor.” (Mateus 9.35-36)
Como os profetas, Jesus criticou os pastores, governantes e religiosos, que ao invés de conduzir as ovelhas em um caminho seguro e cuidar delas, colocavam mais fardos e as fragilizavam ainda mais.
Ele traz a noção do bom pastor em contraste com o mercenário que não cuida e engana as ovelhas, representação daqueles que carecem de cuidado amoroso, misericordioso e justo:
“Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cuidado com as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim assim como o Pai me conhece a mim, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas.” (João 10.11-15).
Neste ano eleitoral conturbado, marcado por discursos e práticas violentas, desde a brutal execução da vereadora Marielle Franco, em março, até o atentado ao candidato a presidente Jair Bolsonaro, na sexta-feira 7, eis nestes registros da tradição cristã um parâmetro do pastoreio.
Ele serve tanto a governantes e a religiosos quanto ao caminho pelo qual devem ser guiadas as ovelhas/povo/eleitores.
Por isso termino este texto propondo uma aplicação desta reflexão. O candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, após o ataque à faca contra o deputado, indicou um caminho de governança: “Se querem usar a violência, os profissionais da violência somos nós”.
A brutalidade da declaração chamou a atenção mas é fato que esta demonstração de “profissionalismo da violência” tem sido dada há algum tempo com palavras e gestos de campanha desta chapa.
Que cidadãos, incluindo religiosos, escolham e proclamem “profissionais da violência” como seus representantes na governança do País, embora contraditório, é um fato e um direito.
E este eleitorado certamente deve estimar as consequências nefastas de sua decisão na educação, na saúde pública, no trabalho e no emprego, na vida das cidades, com seus centros e periferias, e na vida do campo com todas as demandas de acesso ao cultivo e à propriedade da terra, incluindo as populações indígenas, nas diferentes expressões de cultura, no meio ambiente, no patrimônio material e imaterial do país. Sim, é muita gente e muita coisa por cuidar/pastorear no Brasil.  
Entretanto, diante do parâmetro do pastoreio pautado no sentido cristão, é preciso buscar honestidade. Não se usar o cristianismo e a Bíblia como escudo para justificar a opção pelos “profissionais da violência”, sejam eles candidatos, realizadores de execuções, chacinas e atentados ou promotores de notícias falsas.
Admitir que se trata de uma escolha que nega e se opõe ao modelo de pastoreio do criador e do “bom pastor”. Corre-se o risco de que ovelhas de uma religião pautada por amor, misericórdia e justiça sejam guiadas não por pastores e pastoras, mas por mercenários.

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