“Recentemente, a fala do Ministro Gilmar Mendes, referindo-se à suposta responsabilidade dos militares pela política genocida praticada atualmente no Brasil, causou polêmica. A questão foi o uso da palavra, que evoca experiências históricas traumáticas e pavorosas, como aquela vivida no holocausto. Remete, também, a experiências próximas de nós, como a dos indígenas dizimados pelos portugueses, porque caçados, escravizados, infectados por doenças trazidas para cá e mortos.
A ocupação do território nacional implicou a redução da população indígena em pelo menos 80%. Esses massacres históricos, direcionados contra populações específicas, se dão a partir de escolhas políticas que às vezes são adotadas sob a lógica da exceção, mas outras tantas vezes são colocadas em prática sob o manto da democracia. É o caso dos genocídios praticados pelos colonizadores nos países periféricos como o nosso.
Em resumo, genocídio é definido como a prática de extermínio de um conjunto de pessoas, pelas mais diversas razões, eleitas pela vontade de quem extermina. Pode ser para ocupar o território que essas pessoas habitam ou por razões étnicas, religiosas, econômicas. Mais recentemente, Achille Mbembe cunhou o termo necropolítica, definindo-o como a escolha estatal de matar determinados grupos de pessoas.
Novamente aqui está presente o fato de que se trata de uma escolha dos dominantes. A diferença é que o conceito de necropolítica se refere especificamente ao conjunto de escolhas políticas de determinado governo, em relação a certo grupo de pessoas, de modo a escolher quem pode e quem não pode continuar vivendo.
Sob tal lógica, aqueles que tem o poder de gestão do Estado optam, deliberadamente, por versar recursos públicos, instrumentalizar a segurança pública e autorizar ação de forças repressoras, de modo a conceber como consequência “natural” e, por isso, desejada, a morte de uma parcela específica da população.
Quando olhamos para a realidade brasileira, parece legítimo questionar por que apenas agora se utiliza esses conceitos de necropolítica ou prática genocida para identificar a política adotada em nosso país.
Até para que saibamos se é mesmo possível denominar genocida uma tal política, é preciso ter presente tudo o que nos trouxe até aqui.
É verdade que o Estado Social não chegou a se realizar no Brasil e que os Direitos Humanos nunca foram reconhecidos a uma parcela importante da população.
É também verdade que há uma estrutura histórica que determina uma atuação estatal desde sempre comprometida com a manutenção da desigualdade social. E, em uma realidade de desigualdade abissal como a nossa, em que o mesmo grupo (que detém capital) sempre foi privilegiado em detrimento de outro, aquele formado por pessoas pobres, negras, habitantes das periferias dos grandes centros urbanos, não é difícil perceber que as políticas públicas foram determinantes para permitir a sobrevivência e implicar a morte de determinadas pessoas.
Em 2015, quando a situação no país era diversa, já havia a denúncia do longo tempo de espera, muitas vezes fatal, para o atendimento pelo SUS. Já havia, também, importante diferença na cor da população carcerária no Brasil, indicando abertamente a existência de uma política pública de criminalização de pessoas negras e pardas.
Por que, então, não lembrávamos a palavra genocídio nem nos preocupávamos em evocar o termo necropolítica para identificar a gestão pública da morte?
Certamente porque o Estado, mesmo sendo forma política do capital e, portanto, fazendo escolhas que concretamente beneficiam quem tem mais e penalizam quem nada tem, adotava políticas públicas que de algum modo compensavam a dominação e reduziam (pouco) as desigualdades. A vida era, portanto, concretamente melhor, pelo menos para parte da população.
O que passa a ocorrer no Brasil a partir de 2013 é, em parte, dialeticamente, o resultado dessa gestão política para o capital, que nunca ousou promover mudanças profundas e enfrentar chagas históricas como a do racismo e a do machismo, ambos estruturais.
A escolha de conferir direitos, gerir crises, fazer concessões, mas perpetuar as bases de um sistema profundamente perverso (que exclui, produz desigualdade e miséria; estimula concentração de renda e concorrência individual) não tinha como resultar algo diverso.
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