sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Delfim, a morte do estado burguês dialético

Nildo Ouriques mais uma vez nos brinda com um texto ácido, mas lúcido e totalmente em linha com os fatos históricos que tiveram a participação do falecido Delfim Netto. Apesar disso farei algumas ponderações, que não apenas considero pertinentes, mas considero também necessárias. Não me proponho a uma biografia, mas a situações genéricas da vida do economista e político brasileiro.

Em 1964, quando rompe o golpe de mesmo ano, Delfim estava no meio de sua 3ª década de existência, mas já se movia por governos, principalmente estaduais, e formava suas muitas conexões, incluindo estrangeiras. Em 1967 começa o período que marcou sua vida, como Ministro da Fazenda dos governos militares, e mais especificamente do período do chamado "golpe no golpe", quando o movimento tenentista dos anos 20 - agora Generais e Coronéis - chega ao poder e abraça uma linha mais nacionalista e desenvolvimentista, muito ligada ao período Vargas, a quem os Tenentistas prestaram bastante apoio.

No magnetismo os opostos se atraem, mas na política são os iguais que o fazem. Delfim não era um democrata, e se sentia confortável em meio os "arroubos" de nossos Generais ou do "guardinha da esquina". Não que fosse um ditador ideológico, porque a forma como se adaptou aos  novos ventos democráticos indicam mais a alma de um pragmático. 

De qualquer forma, ele sempre se mostrou um elemento de ligação que validava novas forças políticas em ascensão (ptucanismo neoliberal), e apaziguava e amortecia o trabalhismo que tentava voltar ao protagonismo político que envergou por mais de 30 anos. 

Ao fim servia mais como um conselheiro, mas não como um guia. Isso se expressa bem na eleição de 2018, quando seus conselhos foram ignorados pelos líderes políticos medíocres que ajudou a formar. Em sua mediocridade esses líderes ainda o ouviam, mas já não o escutavam.

Apesar disso tudo,  não era de se esperar algo de diferente. Apesar de os governos militares terem nos proporcionado alguns arroubos interessantes de nacionalismo e desenvolvimento, eles falharam miseravelmente em criar cidadãos, distribuir a riqueza gerada nesse movimento, e nos legaram os mais medíocres políticos nos anos que se seguiram.

Delfim foi parte desses dois "Brasis", e foi parte efetiva, seja nos acertos, seja no desastre que nos acometeu. 




A morte de Delfim Netto dividiu novamente o país: de um lado, os democratas e de outro, os autoritários. Não há surpresa na divisão como discutimos no meu O colapso do figurino francês (Editora Insular) ao explicar as oposições binárias constitutivas da sociologia uspiana que, finalmente, comandam as cabeças "pensantes" dos partidos políticos da esquerda liberal brasileira (tucanos, petistas, psolistas, pecedobistas, etc.). Lula fez oposição sindical a Delfim, mas bastou pisar na arena propriamente política do parlamentarismo burguês para render-se a uma reconciliação rápida, sincera e duradoura com o ex-ministro da ditadura. A nota presidencial publicada hoje expressa o sentimento sincero de Lula sem contradição com declarações do passado.

O protesto dos democratas oculta algo essencial: os mesmos que condenam o passado "autoritário" de Delfim - que assinou com convicção o AI-5 - são exatamente aqueles que com absoluta frequência manifestam esperanças e apostam firme na capacidade do capitalismo dependente rentístico promover a cidadania plena à massa de trabalhadores atualmente condenados à superexploração da força de trabalho. A propósito, na transição da ditadura de classe implantada em 1964 para o regime liberal burguês iniciado em 1985, a hegemonia burguesa apareceu sob a forma de "dívida social". Os liberais democratas orientaram Sarney na linha filantrópica do "tudo pelo social" com o aceite de muito bom grado dos conservadores, uma vez que as energias populares contra a ditadura eram fortes e poderiam cair na mão de um aventureiro qualquer. O bordão lulista de "colocar os pobres no orçamento" é filho da mesma filantropia destinada a assegurar tanto a apatia dos miseráveis quanto a superexploração que alimenta os super lucros da burguesia e sua associação carnal com as multinacionais e banqueiros de toda espécie e origem.    

Os economistas de oposição - assim eram chamados os economistas de "esquerda" - disputavam com Delfim a condução da política econômica sem jamais romper com a economia política que já orientava o desenvolvimento capitalista no país. Os decibéis aumentavam um pouco na imprensa liberal burguesa - Folha de São Paulo à cabeça - quando o tema era inflação, dívida externa e taxas de juros mas silenciava nas questões de fundo. No máximo, um "debate" superficial sobre "modelo de desenvolvimento" na linha celso-furtadiana. Nada além! Na verdade, até mesmo Gustavo Franco repetiria mais tarde e sob outras circunstâncias, uma inocultável e atávica convicção: "somos todos desenvolvimentistas". Afinal, não são os antigos adversários de Delfim que reclamam sob a luz do sol que o "dinamismo do desenvolvimento brasileiro" cedeu a partir de 1980? Não foi o general Geisel o promotor do II PND que tanta saudade deixou entre os desenvolvimentistas quando as promessas de um sonho de uma noite de verão desapareceu para sempre? Acaso, não estava Delfim no comando do "milagre brasileiro" com as taxas do PIB capazes de fazer inveja aos chineses?

Delfim, na prática, mantinha a hegemonia e permitia alegremente a existência de uma "esquerda" ao seu lado, especialmente no período da Constituinte. O "gordo" - como era tratado por desafetos e admiradores em ambientes exclusivos - não perdeu a lucidez diante do encanto democrático: "com essa constituinte o país é ingovernável" afirmou ao término do período constituinte. De fato, após sua aprovação, a burguesia lançou seu ímpeto reformista contra os arroubos dos constituintes de 1987 que todavia não termina nem terminará jamais! A esquerda liberal começava seu périplo impotente contra a "era neoliberal". Entretanto, o deputado com amplas conexões nos Estados Unidos e o empresariado paulista, jamais perdeu a lucidez burguesa necessária para manter o controle ideológico e político tanto das decisões de Estado quanto do debate público. Venceu todas! Não raro, era contemplado com elogios desmedidos sobre sua cultura e erudição sem, contudo, exibi-las a luz do dia num confronto com críticos de estatura. Ao contrário, os elogios eram produto de um reinado solitário em programas de TV e entrevistas sem contestação, afiançado no seguro da imensa ignorância e oportunismo dos jornalistas que exibiam naquela época a mesma sabedoria responsável pelas enfadonhas entrevistas atuais na abordagem da economia.   

A propósito, na atualidade, o "debate" sobre economia é inexistente nos partidos e sindicatos. A imprensa burguesa cumpre a função da manufaturação da opinião pública em favor do capitalismo dependente rentístico e conta com o bom comportamento de eventuais "críticos" orientados pelo bom mocismo em busca de um lugar ao sol no debate público. A covardia intelectual é imensa! Na prática, a reflexão sobre economia está confinada à universidade, totalmente incapaz de uma contribuição efetiva para o público ilustrado ou semi-letrado. A agenda do último encontro dos estudantes de economia - ENECO - expressa de maneira melancólica o ambiente intelectual e ideológico decadente destinado aos estudantes, diga-se de passagem que os encontros de área dos profissionais da área não são melhores, ao contrário.    

Delfim venceu, devemos reconhecer. Não à toa recebe as honras presidenciais, as condolências dos organismos da burguesia, o reconhecimento das instituições da republica burguesa, os elogios da imprensa monopólica e, finalmente, também de seus pares. A hegemonia burguesa é completa. Quem sabe agora, quando "tudo está dominado" e a república burguesa exibe suas vísceras sem constrangimentos nem oposição, os brotos da rebeldia política e intelectual necessárias para uma radical ruptura com o passado e o presente possam merecer a atenção e o trabalho de todos os interessados em romper com as ilusões que Delfim alimentou durante sua longa e confortável existência.

Revisão: Junia Zaidan

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