O texto abaixo é um pouco longo,
mas vale muito a pena dar uma olhada. Nele podemos ter noção de como é
importante para o país investir mais em pesquisa; em estar atento ao futuro, já
que toda reserva mineral é finita e precisaremos sempre buscar novas fontes; em
desenvolver seu poder marítimo, tanto de nossa esquadra de guerra, quanto de
sua Marinha Mercante, e esta última não se resume ao comércio e transporte de
cargas, mas também à exploração e pesquisa do fundo oceânico.
Não podemos mais estar na esteira
dos países “tradicionalmente” mais desenvolvidos, e precisamos nós mesmos
adentrar este seleto grupo de potências e preservar nosso futuro.
Valor Econômico – Artigo – 07/07/2014
Este mar é meu
Houve um tempo, há 200 milhões de
anos, em que toda a terra do mundo era uma só. Lentamente, como todas as
grandes mudanças geológicas que ocorrem no planeta, essa enorme massa foi se
dividindo. As imensas fraturas originaram a América do Sul, África, Austrália, Antártica
e Índia. Passaram-se outros muitos milhões de anos, América e África se
separaram e, entre elas, surgiu o Oceano Atlântico. Esse mar, que ninguém sabia
onde e se iria terminar, amedrontou e seduziu civilizações. Até que destemidos
navegadores, entre os séculos XV e XVII, singraram essas águas. Depois de
meses, viajando a bordo de precárias embarcações, encontraram aquele pedaço de
terra que, havia milênios, se desprendera da África. Era um continente, a
América. Na época, os países se envolveram em uma verdadeira corrida marítima
para alcançar o território rico em ouro, pedras preciosas, outros minerais e
recursos naturais.
Nas últimas décadas, uma nova
competição nos oceanos se desencadeia entre as nações. Dessa vez, pelas
riquezas de outra terra - aquela que está no fundo do mar. Nessa corrida, o
Brasil poderá, ainda neste ano, desfraldar sua primeira bandeira em águas
internacionais além do limite das 200 milhas náuticas (370 km). A partir desta
sexta-feira, os integrantes da International Seabed Authority (ISA) - em
português denominada de Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (Isba) -
se reúnem em Kingston, na Jamaica, e dirão se aceitam o plano de trabalho para
exploração e pesquisa de uma área do Atlântico Sul conhecida como Elevação do
Rio Grande.
Se a permissão for concedida, o
governo brasileiro ganha, por um período de 15 anos, o direito de pesquisar o
potencial do território. Ele está a 1,5 mil quilômetros de distância da costa e
recebeu o nome de elevação porque está a, aproximadamente, mil metros da
superfície, numa região onde o oceano alcança quatro mil metros de
profundidade. Nele já foi constatada a existência de cobalto, níquel, cobre e
manganês e outros metais: zircônio, tântalo, telúrio, tungstênio, nióbio,
tório, bismuto, platina, cério, európio, molibdênio e lítio essenciais para a
indústria de alta tecnologia. Cientificamente, eles são chamados de nódulos
polimetálicos.
Em outra etapa, o país poderá
explorar e até extrair esse minério. "Além do caráter estratégico, a iniciativa
brasileira permitirá o desenvolvimento de recursos humanos e desenvolvimento
tecnológico", explica o diretor de Geologia e Recursos Minerais da
Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), um órgão governamental.
O plano de trabalho na Elevação,
entregue à ISA no último dia de dezembro de 2013, foi movido pelo interesse
econômico, mas principalmente estratégico. Se o Brasil não se capacitar e
explorar essa riqueza, outros países o farão. Há também um item importante
incluído na permissão: o país que detém o controle da região pesquisada pode
usar suas Forças Armadas para protegê-la. "As nações descobriram o mar,
desenvolveram pesquisas e tecnologia para uso em grandes profundidades e
perceberam que ali há tanta riqueza ou mais do que existe no continente",
diz o almirante Marcos Silva Rodrigues, secretário da Comissão Interministerial
para os Recursos do Mar (Secirm), um colegiado com a participação de 16
ministérios.
"As nações descobriram o mar
(...) e perceberam que ali há tanta riqueza ou mais do que existe no
continente", diz o almirante Rodrigues
A Isba é uma organização
internacional autônoma pertencente ao sistema das Nações Unidas. Por intermédio
dela, 166 Estados partes organizam e controlam as atividades no mar,
particularmente com vista à gestão de seus recursos minerais. Ela surgiu para
aplicar as determinações da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar,
criada em dezembro de 1982 e em vigor desde julho de 1994. A lei maior da
organização, como se fosse a sua Constituição, afirma que o leito marinho, além
das jurisdições nacionais, passa a ser considerado a "Área". Todos os
recursos que ali estiverem, inclusive os minerais, são patrimônio da
humanidade. É como se houvesse uma linha na água demarcando o que é de cada um
e o que pertence a todos. Procurada pelo Valor, a Divisão do Mar, da Antártida
e do Espaço do Ministério das Relações Exteriores preferiu não se pronunciar
sobre o tema antes da reunião em Kingston.
No século XXI cresceu o interesse no
mundo pela exploração mineral dos oceanos na chamada Área. A China já realizou
prospecções na região e, não faz muito tempo, a China Ocean Mineral Resources
Research and Development Association, estatal chinesa, anunciou a descoberta de
depósitos hidrotermais (sinal da existência de minérios) no Atlântico Sul. Os
chineses já mapearam os locais onde eles estão e vêm manifestando interesse em
associar-se, em joint ventures, e cooperar com outros países com o objetivo de
conseguir concessões da Autoridade.
A Elevação do Rio Grande tem sido
visitada pela Alemanha e pela Rússia. O Instituto de Pesquisa Alemão IFM-Geomar
anunciou que ainda neste ano fará uma expedição oceanográfica no Atlântico Sul
para ampliar o conhecimento sobre possíveis minerais identificados por
britânicos e chineses. A Rússia, que já faz pesquisas no Oceano Pacífico e no Atlântico
Norte, quer marcar sua presença também no Atlântico Sul. "Se não
investirmos, corremos o risco de ter um país estrangeiro extraindo riquezas ao
lado das nossas fronteiras marítimas", diz Roberto Ventura, diretor do
CPRM.
O valor dessas riquezas, por
enquanto, é incomensurável. Mas os produtos que dependem desses minérios para
existir são mais do que conhecidos. O cobalto é indispensável na produção de
ligas metálicas na indústria de aviação; nos eletrodos das baterias elétricas
dos chamados "carros verdes", movidos a eletricidade; e nos
equipamentos que usam a radiação gama para os tratamentos de câncer.
Os depósitos de fosforita, que estão
sendo mapeados nas bacias de Santos e Pelotas (RS), poderão fornecer esse
mineral, imprescindível à indústria de fertilizantes. O Brasil é o quarto maior
consumidor de fertilizantes, mas responde por apenas 2% da produção mundial. O
uso desses produtos aumentou de 3,1 milhões de toneladas em 1990 para 12,2
milhões de toneladas em 2012. Até 2017, acredita-se que o incremento será de
3,8% ao ano.
As principais culturas que dependem
dos fertilizantes são: soja (34%), milho (18%), cana-de-açúcar (15%), café
(7%), algodão (6%) e arroz (2%). "Considerando o volume de recursos que a
mineração gera ao país e as perspectivas que se abrem com a exploração no mar,
o governo precisa tratar desse assunto mais seriamente e aumentar essa
discussão no Marco Regulatório da Mineração que tramita no Congresso",
reclama o geólogo Agamenon Dantas, da consultoria Oceanis Mineral International.
A empresa trabalha com 40
profissionais da área que fazem diagnósticos e traçam perspectivas do setor
para a iniciativa privada e governos. Um desses consultores é o geólogo Kaiser
Gonçalves de Souza. Formado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Souza é
mestre e doutor pela Université de Paris VI em geologia marinha. Nascido no
interior do Maranhão, registrado em Pernambuco - o pai pernambucano queria que
o filho tivesse a mesma origem que ele -, Souza foi criado em Porto Alegre. Cedo
se apaixonou pelo mar. Trabalhou na Autoridade Internacional dos Fundos
Marinhos e como diretor do Serviço Geológico do Brasil (CPRM - sigla advinda da
razão social Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais).
Na década passada, com sua equipe,
realizou aquele que é considerado o primeiro mapeamento da região submersa,
agora requerido pelo governo brasileiro. O pedido informa a área pleiteada,
cerca de 3 mil km2 no Atlântico Sul, e os investimentos, previstos em US$ 11
milhões nos primeiros cinco anos de contrato. "Não é muito, mas, nesse
tipo de trabalho, o maior custo é com o aluguel de navios de outros países,
porque não temos embarcações apropriadas para essa finalidade, e com as
análises dos materias coletados", explica Souza, que acredita no sinal verde
da Autoridade para o pedido.
Em 2011, foi fretado o navio de
pesquisa Marion Dufresne, do Instituto Polar Francês. O CPRM contratou o navio
com recursos financeiros do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do
Ministério de Minas e Energia - aproximadamente R$ 60 milhões. No ano passado,
uma parceria científica entre o Brasil e o Japão permitiu coletar amostras - a
4.200 metros de profundidade - das rochas na Elevação do Rio Grande. Isso foi
feito com o minissubmarino Sinkai - um dos poucos no mundo capaz de enfrentar
as condições de profundidade até 6.500 metros -, equipado com braços mecânicos
e câmeras de altíssima resolução.
Essas expedições também serviram para
corroborar outra tese dos cientistas brasileiros em defesa da propriedade da
Elevação. Ela faria parte de uma das montanhas da cadeia que ficou submersa em
todo o Atlântico Sul, com alturas que chegam a 3.200 metros a partir do leito
do oceano. Ainda que localizada em águas internacionais, as rochas que foram
encontradas demonstram que a região seria uma extensão das terras brasileiras
inundadas pelo oceano, separando a margem continental brasileira das grandes
profundidades oceânicas. "É como se um enorme pedaço de nosso continente
tivesse sido coberto pela água. E, de fato, foi", afirma Ventura.
A busca por essa nova fronteira e
seus recursos deu origem a mais do que um projeto: Levantamento da Plataforma
Continental (Leplac), iniciado há duas décadas por cientistas; o Remplac, que
avalia a potencialidade mineral da Plataforma Continental Jurídica Brasileira;
e o Proarea (Programa de Prospecção e Exploração de Recursos Minerais do
Atlântico Sul e Equatorial), onde está a pesquisa da Elevação do Rio Grande.
"Eles são idênticos no objetivo, mas diferentes na área em que atuam. Um está
na jurisdição brasileira e outro na zona internacional dos oceanos. Na
Plataforma - uma extensão geológica, como se fosse um minicontinente -
encontram-se as mesmas rochas que na terra", explica Kaiser Souza.
"Se comprovarmos que o
continente submerso é parte do Brasil, isso pode mudar toda a dimensão atual de
nosso mar territorial", acrescenta Lauro Calliari, professor e doutor em
oceanografia geológica do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do
Rio Grande (Furg), um dos mais importantes centros de estudos brasileiros sobre
o assunto.
O Levantamento da Plataforma foi
entregue à ONU em 2004 e é uma das vertentes da Amazônia Azul. A expressão foi
criada pelo ex-comandante da Marinha Roberto de Guimarães Carvalho com o
objetivo de mostrar à população que o mar brasileiro era tão importante quanto
a Amazônia. "A Marinha nunca teve a intenção de promover uma disputa para
medir a importância de uma ou outra área. Ambas são estratégicas para nosso
país", diz o almirante José Roberto Bueno Junior, diretor do Centro de
Comunicação Social da Marinha.
"Temos tradição de olhar o mar
de maneira lúdica que precisa mudar. É necessário pensar no mar
estrategicamente", diz Bueno, da Marinha
O Brasil tem cerca de 8,5 mil km de
costa e uma área oceânica que totaliza quase 4,5 milhões de km2 sob sua
jurisdição, divididos da seguinte forma: nas primeiras 12 milhas náuticas (22,2
km), o país tem a soberania total sobre a área, como se ela fosse uma extensão
do continente; depois disso, nas outras 12 milhas subsequentes está a chamada
Zona Contígua (de 12 a 24 milhas), onde as autoridades brasileiras têm a
prerrogativa de fazer cumprir as legislações aduaneira, fiscal, sanitária ou
imigratória. Essas duas áreas estão dentro da Zona Econômica Exclusiva. Ela é
definida como o espaço marítimo onde o país é soberano para fins de exploração,
conservação e gestão dos recursos ali existentes, como, por exemplo, os do
pré-sal. Atualmente, 91% do petróleo brasileiro vem do mar e grandes depósitos
de de gás natural foram encontrados na bacia de Santos e no litoral do Espírito
Santo.
A Amazônia Azul - 4,5 milhões de
quilômetros quadrados, que equivalem a 52% do território continental do país -
engloba projetos e ações nas áreas econômica, ambiental, científica e de
soberania. No mar, as fronteiras não existem fisicamente. Portanto, é a
existência de formas de dissuasão que permitem a um país mostrar aos outros seu
domínio sobre a região. "Temos uma tradição de olhar o mar de maneira
lúdica que precisa mudar. É necessário pensar no mar estrategicamente. Só para
citar um exemplo, podemos lembrar que mais de 95% das exportações brasileiras
são transportadas pelo mar", observa Bueno.
Se tantas riquezas circulam e estão
nessas águas, resguardar a soberania sobre elas é uma das grandes preocupações
das autoridades. "Somos, sim, um país com muitas carências. Sabemos também
que nossas Forças Armadas não podem ser maiores do que a capacidade do Brasil
de mantê-las. Tudo isso, no entanto, não nos exime da obrigação de proteger a nação",
afirma o secretário da Secirm, almirante Rodrigues. A Marinha desenvolve
diversos projetos nesse sentido, como o Programa de Desenvolvimento de
Submarinos (Prosub), que prevê a construção do submarino a propulsão nuclear e
um sistema de vigilância e de monitoramento semelhante ao Sivam (Sistema de
Vigilância da Amazônia).
Nem todos os desafios para iniciar a
conquista do território marítimo além das atuais fronteiras estão encaminhados.
Um deles é o de convencer a iniciativa privada a investir e a participar dos
trabalhos na Elevação do Rio Grande, ainda que em etapas futuras.
"Qualquer atividade no mar sempre será muito cara. A ciência fez já uma
parte, identificando os minerais que ali estão. Agora a indústria brasileira,
os grandes conglomerados de mineração, têm que participar também", afirma
o professor Kaiser Souza.
Outro obstáculo a ser superado é o da
proteção ambiental, que preocupa a comunidade científica. "Por mais que se
trabalhe com projetos que busquem a sustentabilidade, sempre haverá algum
impacto no ambiente marinho. Não é tão simples. Não é só ir até o fundo e tirar
o minério", alerta o professor Calliari.
Edmo Campos, professor do Instituto
Oceanográfico da Universidade de São Paulo, um dos assessores da comissão do
Ministério da Ciência e Tecnologia que organiza a criação do Instituto Nacional
de Pesquisas Oceanográficas e Hidrovias, concorda com a posição de Calliari.
Ele é especialista em oceanografia física e coordena a participação brasileira,
financiada pela Fapesp, na análise da circulação de calor no Atlântico Sul, o
Samoc (South Atlantic Meridional Overtuning Circulation). "Já foi
comprovado que essa região não é completamente destituída de vida. Sabe-se que
há muitos organismos vivos ali que nem sequer foram classificados. Machuca os
ouvidos dos cientistas a possibilidade de que eles desapareçam sem ter sido
conhecidos", afirma Campos.
Atividades de mineração em águas
profundas, observa Campos, são passíveis de acidentes cujos danos podem até
atingir a costa. "O Brasil deve fazer as pesquisas. Mas não pode levar
isso adiante sem um estudo criterioso do impacto. Há uma série de perguntas
sobre esses trabalhos que não foram respondidas ainda", adverte.
Responder a todas as perguntas sobre
o que existe nas profundezas do mar, considerada a última fronteira do mundo, é
tarefa para muitas gerações. Até que o homem chegue lá, as descobertas
científicas deverão diminuir, aos poucos, o sem-fim dessas questões. Mas
certamente não conseguirão impedir que os segredos ocultos no fundo das águas,
por muito tempo ainda, atemorizem e estimulem a imaginação daqueles que tentam
decifrá-los.
Por Monica Gugliano