sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Viver para contar - 1: Descarregar é preciso, comer não é preciso?

A alimentação era precaríssima e reduzia-se a arroz e farinha.
As baratas infestavam o navio todo, os banheiros não tinham louças e os tripulantes faziam suas necessidades em buracos no piso onde deveriam estar os sanitários.

Em 1999, fazia uns dois meses em que eu trabalhava no Terminal de Produtos Siderúrgicos (TPS) do porto do Rio de Janeiro, quando recebemos um navio para descarregar 20000 TM de bobinas de aço. O Agios Spyridon, com bandeira de Malta, tinha uma tripulação de vietnamitas. Quando subimos a escada de portaló, nos espantou o mau estado de conservação do navio, mas coisa pior estava por vir.

Ao iniciarmos a descarga, constatamos que os paus-de-carga da embarcação estavam condenados e totalmente fora dos padrões técnicos de projeto, e aí se iniciaram os nossos problemas. Os estivadores sentiram a periculosidade dos aparelhos e se recusaram a efetuar a descarga. A sociedade classificadora e autoridade como o Port State Control e o Ministério do Trabalho foram acionados e o navio ficou sem operar em busca de uma solução para o impasse.

A presença das autoridades a bordo provocou uma inspeção geral do navio, que ficou detido não só pelos problemas em seus paus de carga, mas também por uma série de problemas sérios na praça de máquinas, passadiço e equipamentos de combate a incêndio, salvatagem e abandono. O navio era substandarde e ninguém compreendia como podia estar navegando.

A presença do Ministério do Trabalho também constatou algo que ninguém esperava. A tripulação tinha salários baixíssimos, e apenas nos contratos, porque nenhum deles havia recebido um centavo sequer durante os seis meses que se encontravam a bordo. A alimentação era precaríssima e reduzia-se a arroz e farinha. As baratas infestavam o navio todo, os banheiros não tinham louças e os tripulantes faziam suas necessidades em buracos no piso onde deveriam estar os sanitários. Por fim, os camarotes não tinham camas e os tripulantes dormiam em esteiras de palha. Resumindo: as condições eram subhumanas.

Após cerca de um mês, o navio foi movido de cais para que pudesse ser descarregado por guindastes de terra. Também foi fumegado e a tripulação recebeu gêneros alimentícios e camas para dormir, além de outros utensílios de primeira necessidade. Saiu sem ter todos os problemas técnicos sanados (apenas os mais urgentes), mas com uma série de exigências para cumprimento no próximo porto.

Pouco mais de dois anos depois comecei a trabalhar como inspetor de Bandeiras de Conveniência da ITF, e voltei a ter notícias do navio. O mesmo frequentava o porto de Santos com regularidade, transportando açúcar para a África e, de vez em quando, apresentava problemas semelhantes aos que tivemos no Rio de Janeiro. Só parei de ter notícias quando o navio deixou de vir ao Brasil, devido às constantes visitas e pressões das autoridades para que melhorassem as condições de manutenção e de vida a bordo para a tripulação.

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