O que revela a incomum lista de compras de Galileu em 1609 que revolucionou a ciência
Em um dia de inverno em Pádua, há 410 anos, Galileu Galilei fez uma lista das compras que queria fazer em sua próxima viagem a Veneza.
Era parecida com essas que às vezes encontramos esquecidas em nossos bolsos. A de Galileu, como alguma das nossas, estava escrita no verso de uma carta sem importância que havia recebido recentemente.
- A carta em que Galileu Galilei tentou 'maquiar' ideias 'heréticas' para evitar Inquisição
- Água anima cientistas sobre possibilidade de vida em planeta a 111 anos-luz da Terra
Começa com...
- Calçados de pele e um gorro pequeno para Vincenzo (seu filho)
- A caixa com as coisas de Marina (Gamba, sua companheira)
- Lentilhas, grão de bico branco, arroz, passas, trigo
- Açúcar, pimenta, cravo, canela, especiarias, geléias
- Sabões, laranjas
- Dois pentes de marfim
- Malgavia (um tipo de vinho importado da Grécia) do senhor (Giovanni Francesco) Sagredo (um dos seus melhores amigos em Veneza)
A lista é preciosa por ter sido escrita de letra e punho pelo gênio de Pisa, e porque nos convida a imaginar seu cotidiano.
Mas há outra razão que faz com que ela seja interessante. Ele anotou depois objetos pouco usuais e até misteriosos, como:
- Dois pelouros (projéteis de antigas peças de artilharia)
- Tubo de órgão de estanho
- Trípoli
- Pedaços de espelho
- Colofônia (ou breu)
Diferentes tipos de espelho, uma peça de um instrumento musical e balas de armas de guerra... A sua lista de compras, hoje, dificilmente incluirá essas coisas.
Mas, claro, antes de uma viagem, nem todos nós nos propomos a transformar o que era vendido como brinquedo em um instrumento que mudaria a visão do universo.
O brinquedo
Em 1608, um conflito brutal entre holandeses e espanhóis, que começara 40 anos antes, estava em ponto morto. As duas partes estavam desesperadas para encontrar algo que lhes desse uma vantagem militar.
Conta a história que, um dia, na cidade de Middelburg, em um condado das Províncias Unidas dos Países Baixos, um jovem fabricante de óculos chamado Hans Lippershey estava em sua loja observando duas clientes brincar com um par de lentes.
Uma delas tinha uma lente convexa, do tipo que se usa nos óculos para aumentar objetos, e a usava para olhar um cata-vento. Mas, quando movia a lente para longe de seus olhos, a imagem ficava borrada.
A outra menina erguia uma lente côncava e a colocou em frente à lente convexa. Para sua supresa e deleite, a imagem ampliada pela primeira lente voltou a ser nítida.
Mais tarde, Lippershey pegou um tubo, juntou essas duas lentes na orientação correta, e se deu conta da utilidade da ferramenta – e, inclusive, que poderia ser útil para os holandeses na batalha, porque poderiam ver os invasores espanhóis de locais muito mais distantes de que os olhos permitiam.
Chamou o aparato de "o observador" e, rapidamente, solicitou às autoridades holandesas uma patente, convencido de que faria fortuna.
Infelizmente, os funcionários do governo decidiram que a ideia era muito simples para mantê-la em segredo, dar-lhe a patente e reconhecer o fabricante de óculos como inventor.
A lente espiã
Com a tentativa falida de Lippershey de patentear sua invenção, o secredo da luneta se perdeu. Não só a invenção, agora conhecida com o nome "lente espiã", começou a ser vendida como um brinquedo, como a ideia se estendeu por toda a Europa, até chegar a esse homem que em Pádua estava planejando uma viagem a Veneza.
Galileu era então um professor de matemática de 44 anos e não estava particularmente interessado em óptica.
Mesmo assim, pegou o brinquedo capaz de aumentar os objetos observados em duas ou no máximo três vezes, e aplicou seus conhecimentos de lógica e cálculo para analisar o fenômeno, e ele mesmo fazer experimentos com as lentes.
Ao longo de um único dia, fez sua própria versão da luneta, conforme contou a amigos em uma carta.
"Aplicando meu olho à lente côncava, vi objetos satisfatoriamente grandes e próximos. Pareciam estar a um terço da distância e nove vezes maiores que ao vê-los só com o olho nu."
Galileu não estava necessariamente motivado por pura curiosidade intelectual; lhe entusiasmava a fama, o poder e a glória. E, para conseguir tudo isso, necessitava impressionar as famílias no poder, como os Médicis de Florenças ou os doges (os dirigentes máximos) de Veneza.
O segredo do histórico telescópio
A luneta original que Galileu construiu era um instrumento tosco, que aumentava em apenas três vezes o tamanho do objeto real.
Sua segunda tentativa, segundo uma carta que escreveu ao doge de Veneza, era capaz de incrementar o tamanho em 9 vezes ou 8, segundo registrou em seu tratado "Sidereus nuncius" (conhecido como "Mensageiro sideral" ou "Mensagem sideral").
Ao escrever sobre essas duas lunetas, deu detalhes sobre seus métodos de construção.
Mas, na versão que fez para os Médici, refinada, aperfeiçoada e envolta em um charmoso couro vermelho, só revelou algumas pistas gerais a respeito de melhorias que já se encontravam no mercado.
Até o diagrama impresso no "Sidereus nuncius" é cifrado.
O silêncio de Galileu não surpreende: provavelmente ele já estava consciente da necessidade de guardar para si suas descobertas.
Nessa época, os ópticos guardavam com receio os segredos do polimento das lentes para não correr o risco de que roubassem seu crédito científico e financeiro.
Essa é outra razão pela qual sua lista de compras é tão apreciada.
Respostas na lista
O documento privado revela não só os ingredientes para a criação de um dos maiores tesouros da astronomia, mas também o conhecimento profundo que Galileu havia adquirido a respeito do vidro e da manufatura de lentes, para poder superar a qualidade do que existia até então.
Assim, o trecho que parece um pouco surrealista da lista ganha sentido.
Galileu considerava usar os pelouros, como eram chamados os projéteis das antigas peças de artilharia (pedras maciças de formato esférico, que mais tarde passaram a ser de ferro e conhecidas como balas), para moldar as superfícies côncavas e convexas das lentes.
A lista também trazia o item "Trípoli". Com isso, ele se referia a uma variedade de areia formada por esqueletos de organismos marinhos microscópicos chamados radiolarios – que originalmente foi encontrada na Líbia, perto de Trípoli, daí o nome. Desde a época medieval esse tipo de areia era usado para polir superfícies de vidro ou metal.
E a colofônia (ou breu), uma resina, servia como cola para fixar a lente a algo ou para limpá-la, já que é a resina natural de algumas árvores e sua consistência é a de chiclete – de fato, o chiclete é fundamentalmente colofônia.
Esses e outros nove itens da lista ajudaram os historiadores a averiguar que materiais e quais métodos Galileu usou para criar um dos telescópios mais famosos da história que, segundo o Sidereus Nuncius, podia aumentar o tamanho da imagem em mais de 30 vezes.
É claro, o que fez depois com seu instrumento revolucionário é o que mudaria sua vida para sempre, e a relação da humanidade com o cosmos.
Ele apontou o telescópio ao céu, ao reino dos deuses, e descobriu um mundo que nenhum outro ser humano tinha visto antes.
E o que viu foi absolutamente assombroso.
Suspeita perigosa
Observou que a superfície da Lua, longe de ser perfeitamente esférica como havia dito Aristóteles – o que ainda seguia sendo considerado certo quase 2 mil anos depois de sua morte –, estava "cheia de cavidades e proeminências, não muito diferente da face da Terra".
Descobriu que a Via Láctea era, de fato, "uma série de inumeráveis estelas"; se deu conta de que Júpiter tinha quatro luas próprias e que Vênus tinha fases similares à da Lua; e até notou imperfeições no Sol.
Até então, os astrônomos se comportavam – como escreveu Galileu, frustrado – "como se o grande livro do Universo tivesse sido escrito para ser lido por ninguém mais além de Aristóteles".
Mas cada descoberta que fazia colocava mais em xeque esses conhecimentos adquiridos, e levava Galileu a suspeitar que o que havia dito o astrônomo polonês Nicolás Copernico meio século antes estava correto: a Terra girava em torno do Sol.
Para além das estrelas
Com a criação desses instrumentos, de repente todos podiam olhar para o céu, e isso transformou a forma como pensávamos a verdade e a evidência, bases para a ciência.
Cientistas e amadores podiam ver as coisas por si, de maneira que já não tinham que aceitar a autoridade dos outros sem colocá-la à prova.
Nesse sentido, o telescópio conduziu a democratização do conhecimento.
Nosso universo se expandiu como nunca antes, assim como a compreensão de nosso lugar nele.
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