quarta-feira, 11 de maio de 2016

Fica Dilma

O texto é ótimo. Mesmo assim vale mais comentários do que somente sobre a qualidade do mesmo. Acho que não custa lembrar que Dilma, o PT e seus poucos aliados são hoje grande minoria no Legislátivo, que esse mesmo poder decidiu, já há algum tempo, impedir toda e qualquer ação do Executivo, mesmo que isso inviabilize o próprio país. Sendo assim, com a permanência de Dilma, ou mudamos o Legislativo (e motivos legais reais não faltam para isso), ou ela permanecerá atada e impedida de promover mudanças necessárias ao andamento da Nação.

Fato claro para qualquer um que olhe com isenção, é que no Brasil corre um golpe de estado, mal disfarçado de impeachment. Golpe esse proporcionado pela perda de maioria parlamentar. Dessa forma usam as Casas Legislativas para, indiretamente, eleger um governo impopular, que jamais passaria pelo crivo da urnas. Mais antidemocrático que isso, só se o exército participasse ativamente outra vez.

Hoje o que está em jogo é mais do que a permanência de uma Presidente no Poder. Estamos discutindo se o país realmente deixou a ditadura para trás (até agora tudo indica que não), se o país realmente tem instituições definidas e sólidas (também parece que não), o modelo de desenvolvimento que queremos (excludente ou includente; com viés mais nacionalista ou entreguista, etc.), e também se a vontade do povo é respeitada ou não (isso sempre nos pareceu claro que não).

Mesmo em crise estamos muito melhores do que no auge dos governos tucanos (e que são o modelo dos golpistas). 

O governo já se mostrou favorável a uma saída democrática: eleições gerais já.

Mas isso é saída parlamentarista. A deposição de Dilma também.

Deveríamos rever urgentemente nossa opção presidencialista.




Os historiadores e a Presidenta (Carta Aberta à Dilma Rousseff)

Rio de Janeiro, 06 de maio de 2016
Querida Presidenta Dilma Rousseff,
Permita-me, por favor, chamá-la de querida. Eu tomo tal liberdade como cidadã indignada com o comportamento misógino de ampla maioria dos deputados da câmara baixa desse país, durante a vergonhosa votação da admissibilidade (sem qualquer base legal) do processo de seu impedimento do cargo de Presidente da República. Neste momento difícil, em que poucos ainda acreditam no espírito democrático da maioria dos senadores, escrevo-lhe, também, como historiadora profissional. Pesquisadora e professora de História do Brasil há mais de 30 anos, a partir da difícil vivência da atual crise política, venho renovando algumas das minhas antigas perguntas sobre o passado brasileiro. A angústia que experimento hoje, ao ver a democracia no Brasil mais uma vez ameaçada, me levou, sobretudo, a reavaliar a força da cultura do privilégio, de fundo patriarcal e escravocrata, no tempo presente da política brasileira.
Depois do dia 17 de abril, de triste memória, a direção da Associação Nacional de História fez uma nota oficial de repúdio à votação da admissibilidade do impeachment, lançando a palavra de ordem, “ditatura e tortura nunca mais“. Desde então, milhares de pesquisadores, no Brasil e no exterior, assinaram manifestos em defesa da democracia e do seu mandato. Apesar da divisão existente em toda a sociedade, com certeza a maior parte da comunidade dos historiadores e de cientistas sociais preocupados com a história percebe o impeachment em curso como uma tentativa de golpe de estado institucional. Muitos têm se manifestado, incansavelmente, em suas páginas nas redes sociais.Tania Bessone sugeriu que o 17 de abril fique instituído como dia da infâmia e data inicial do golpe. Nesta sexta feira triste, em que a Comissão Especial do Senado ratificou o espetáculo de horrores da câmara, achei, por bem, registrar em carta aberta, alguns argumentos históricos que têm sido publicamente enfatizados, em defesa da democracia .
Em primeiro lugar, há o forte argumento de que já estaríamos vivendo um estado de exceção, em que a cultura do ódio disseminada pelos meios de comunicação ocuparia papel central. A premissa é defendida por alguns cientistas sociais. Segundo o pesquisador Laymert Garcia dos Santos:
“Esse tipo de análise foi feito nos anos 20-30, com relação ao modo como foi desestabilizada a República de Weimar, na Alemanha, com a ascensão do nazismo. E foi durante a República de Weimar que a gente viu a implosão das instituições e uma desestabilização que deu, como resultado, o triunfo do enunciado “Viva a morte!” e a “Solução Final” do problema judeu. Uma das características importantes dessa implosão das instituições, nos anos 20-30, na Alemanha, é o modo como os juízes violavam a lei e a Constituição, e é ao que estamos assistindo aqui.”
Sem utilizar o conceito de estado de exceção, também eu, desde 2013, venhopreocupada com a semelhança do que estamos vivendo no Brasil com o processo histórico de desqualificação dos governos formados por políticos abolicionistas e libertos, no Sul dos Estados Unidos, depois da guerra civil que aboliu a escravidão naquele país.
Nos Estados Unidos, o período conhecido como “Reconstrução Radical” (1865-1877) foi pioneiro em reconhecer direitos civis e políticos aos ex-escravos tornados livres com a guerra. No entanto, estes direitos retrocederam, devido à eficácia de um discurso construído a partir da manipulação seletiva de uma série de casos de corrupção, segundo o qual toda a ação política dos libertos e o idealismo dos radicais republicanos seriam uma simples fachada para a ação criminosa de um grupo de aventureiros corruptos, que enganavam ex-escravos desinformados. A predominância dessa narrativa resultou na hegemonia da Ku Klux Klan e em leis de segregação racial que durariam até a segunda metade do século XX.
Absolutamente trágicos como fenômenos sociais, os fantasmas do nazismo e da ku klux klan assombram o cotidiano da política brasileira.
O golpe em curso é também reação a mais de uma década de políticas sociais inclusivas. Neste sentido, são comuns, entre os historiadores, as analogias com o golpe de 1964 e outros ocorridos na América Latina da segunda metade do século 20. Como o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, especialista no período, estamos, todos, infelizmente, surpresos de ver o Brasil, de novo, a beira do abismo. Mais que simples comparação, procedimento que em história nunca funciona muito bem, tais analogias oferecem uma base empírica para ajudar a pensar e a tentar entender o que está acontecendo hoje. Reproduzo aqui uma postagem recente em sua página pública no facebook, de Carlos Fico, também especialista no período, como exemplo desse exercício de compreensão. Segundo ele,
O golpe de Estado de 1964 teve etapa militar (com tanques dirigindo-se para o Rio de Janeiro no dia 31 de março), parlamentar (com declaração de vacância do cargo de presidente da República pelo Congresso Nacional na madrugada do dia 2 de abril) e jurídico-legal (com a posse do presidente da Câmara na Presidência da República, às 3h30min da manhã do mesmo dia). Essa posse foi sacramentada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro da Costa, que foi acordado às pressas e concordou em participar da farsa (porque Goulart ainda estava no Brasil).
A simples enunciação dos fatos do passado ilumina os riscos e atropelos que vivemos no presente.
Por fim, muitos historiadores evocam períodos mais recuados da nossa história e vão buscar a raiz da crise atual na nossa formação colonial e escravocrata, que teria feito, da lógica do privilégio, base da cultura política brasileira. Considero, porém, e o faço na boa companhia de Sidney Chalhoub, professor na Universidade de Harvard e, como eu, historiador do século 19, que o problema de fundo da cultura política brasileira não é a lógica do privilégio em si, mas a sua manutenção envergonhada, sem a sustentação da moral aristocrática, a partir da independência política e da criação do estado nacional brasileiro.
Em texto denominado “homenagem do vício à virtude” procurei abordar o nascimento do problema. Após a independência, muitos lutaram para que a lei que proibia o tráfico de escravos fosse efetivamente implementada, mas ela se tornou alvo de um vigoroso processo de desobediência civil por parte dos grandes senhores de escravos, por fim consolidado no movimento político conhecido como Regresso, que alcançou o poder em 1837. A hipocrisia generalizada como política de estado nascia ali. Um relatório do Foreign Affairs de Londres relata mais de 4000 escravizados desembarcadas entre Copacabana e a Ilha Grande apenas em janeiro de 1838.  Como os corpos escravizados de africanos nas praias do Rio no século 19, a corrupção endêmica está aí aos olhos de todos, mas boa parte da sociedade brasileira insiste em ignorar. Evocando Machado de Assis e o mesmo período, Sidney Chalhoub escreveu um artigo cheio de ironia sobre a base social e a ideologia do golpe em curso, em que uma assembleia de acusados de corrupção, presidida por um réu, decretou a admissibilidade do impedimento de uma presidente eleita por 54 mihões de votos, contra a qual não há acusação. O texto imaginava historiadoras do futuro lendo o artigo da revista alemã Der Spiegel, de título “A Insurreição dos Hipócritas”, sobre a sessão da câmara baixa brasileira de 17 de abril. O rei está nu.
Querida Presidenta, entre os inúmeros historiadores e cientistas sociais que hoje lutam contra o golpe travestido de impeachment, muitos sempre foram críticos e mesmo opositores ao seu governo. Não é o meu caso. Nunca fui filiada a qualquer partido político, mas, hoje, posso dizer que me tornei “dilmista”, e acho que nós, os dilmistas, somos muito mais numerosos do que as pesquisas conseguem detectar. Fui sua eleitora por duas vezes, Presidenta, com entusiasmo, e, apesar das alianças difíceis, que hoje cobram um preço doloroso, não me decepcionei. Além da minha empatia histórica pela solidão dos governantes de esquerda moderada à frente de economias capitalistas em crise, nos últimos meses só tem crescido a minha admiração por sua coragem e apreço às instituições democráticas. Graças à serenidade e firmeza de sua atitude, entre os muitos cenários sombrios que a crise atual nos evoca, há um que pode ser positivo. A opinião pública internacional denuncia o golpe em curso e jovens secundaristas em luta por suas escolas, no Rio e em São Paulo, trazem esperança de renovação ao coração de todos os democratas. Toda a estrutura da velha corrupção endêmica está, pela primeira vez, de um só lado. A luta está no começo. Esta pode ser a crise terminal da cultura da hipocrisia na política brasileira. Se assim for, sua atitude à frente da Presidência da República terá sido essencial. Se assim não for, mesmo que eles consigam mais uma vez golpear a democracia e cassar o meu voto e o de mais 54 milhões de brasileiros, ainda assim, não tenho dúvidas, passarão à história como hipócritas, corruptos e golpistas. 
Com admiração,  Hebe Mattos
Professora Titular de História do Brasil/ Universidade Federal Fluminense
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