O texto abaixo, transcrito de uma carta de Mangabeira Unger, um dos ideólogos da campanha de Ciro Gomes é excelente. E é exatamente por isso que sempre disse que o governo petista se exauriu, e por isso caiu. Quando não conseguiu mais dar respostas às necessidades do país, o projeto petista de país passou a ser um estorvo, atendendo de forma precária às várias partes. É certo que isso não era motivo justo para o rompimento democrático-institucional que assistimos, mas explica como e porque se deram as condições para tal rompimento.
Hoje o PT segue estando fora das novas realidades. Politicamente se caracterizou como um partido fisiologista. Nas respostas sociais necessárias propõe mais do mesmo, com algumas nuances democráticas, como controle social das mídias, ou revogação da reforma trabalhista. Economicamente segue tentando agradar gregos e troianos, e acaba imprensado entre interesses tão díspares.
É por isso que o PDT não aceita ser vice na chapa petista. É hora de o Brasil sair da discussão paulista, parada nos anos 90, e entrar numa discussão nacional, antenada com o que acontece no mundo. A Alemanha não tem seu protagonismo fundado em preceitos neoliberais, isso é um engodo. Ao contrário, ela o exerce justamente nos incentivos equilibrados e corretos a suas necessidades, suas potencialidades e suas fragilidades. Ou seja, ela tem objetivos, ela reforça aquilo que tem de forte e mitiga aquilo que tem como fraqueza. Ela tem projeto de país.
É isso que o PDT apresenta nessa eleição, e até agora foi o único. Porque dizer que vai deixar que o mercado resolva as coisas, bom, isso não é papel do mercado, nunca foi, nunca será.
A diferença, resumindo, é um Estado anacrônico petista, contra um Estado moderno e futuro pedetista. Se vai dar certo é outra história, o que sabemos é que o modelo petista se exauriu, e o partido não consegue entregar uma alternativa viável para sair de sua armadilha assistencialista.
O Brasil não se resume a São Paulo, nem se resume ao agronegócio, ele é, e pode ser muito mais que isso.
Guru ideológico do PDT, Unger diz que o PT sofre a tentação de se render ao udenismo e é a esquerda de que a direita gosta
POR ROBERTO MANGABEIRA UNGER
RESPOSTA A UMA PERGUNTA SOBRE AS DIFERENÇAS HISTÓRICAS E ATUAIS ENTRE PDT E PT.
1. O PDT se preocupou em construir um projeto voltado para a maioria desorganizada, não apenas ou primordialmente para a minoria organizada dos trabalhadores. O PT nasceu com base nos interesses e no ativismo da chamada aristocracia operária do Sudeste. Este primeiro foco do PDT, afirmado durante o período de liderança de Leonel Brizola, representou grande avanço em relação ao varguismo dos anos 1950, que definiu como cerne de sua base o operariado industrial formado no bojo da industrialização substituidora de importações. Por outro lado, o PT no poder trocou de base, procurando beneficiar e ganhar a maioria pobre, mas de uma forma que nunca perdeu o ranço assistentacialista – isto é, sem prática ou sequer proposta de mudanças estruturais.
2. O PDT sempre entendeu que o modelo de desenvolvimento que nos interessa passa pela democratização da economia do lado da produção e da oferta, não apenas do consumo e da demanda. E que por isso mesmo exige inovação institucional, inclusive na organização da economia de mercado. Não pode significar o que significava na época da industrialização convencional, chamada fordista, do século passado. Hoje a grande questão é como avançar em todos os setores da economia, não apenas na indútria, rumo a uma forma includente da economia do conhecimento. O PT nunca compartilhou esta preocupação. No poder, contentou-se em usar os estímulos keynesianos e em presidir a desindustrialização do país em favor de um nacional-consumismo.
3. Para o PDT, a afirmação da soberania nacional sempre teve primazia. Jamais teve para o PT. Não era insistência num nacionalismo vago ou retórico. Era e é o entendimento de que um projeto rebelde de desenvolvimento nacional exige independência de fato, inclusive na defesa, na busca de prestígio e protagonismo nas relações internacionais.
4. O PDT sempre entendeu que a afirmação da soberania nacional e a construção das mudanças estruturais na economia no sentido de um produtivismo includente exigem instrumentos políticos. E que entre estes instrumentos está o aproveitamento do potencial plebiscitário de nosso regime presidencialista . É um instrumento necessário, porém insuficiente para construir uma democracia de alta energia, que não precise de crise para propiciar mudança. O PT, com suas âncoras no sindicalismo das minorias organizadas e nos intelectuais de esquerda, sempre sofreu a tentação de render-se ao udenismo de esquerda: conselhos, participação, terceiro setor, até parlamentarismo- tudo menos a construção de um poder capaz de transformar de fato. Esta orientação política que ganhou ascendência no PT ajuda a caracterizar o que Darcy Ribeiro chamava "a esquerda de que a direita gosta".
5. Assim como a afirmação da soberania nacional precisa de instrumento político, assim também precisa de escudo fiscal. Daí a insistência do PDT em radicalizar no imperativo de realismo fiscal. Não para ganhar a confiança financeira, mas para assegurar que o Estado e o pais não dependam da confiança financeira e tenham margem para construir uma estratégia rebelde de desenvolvimento. O PT, ná pratica e no poder, fez o inverso: afrouxamento fiscal sempre que possível para impulsionar o consumo, exceto quando a ameaça de fuga de capitais o levava a privilegiar a busca da confiança financeira. Era o princípio seguido na política inglesa pore Wliiam Pitt the Younger (político que se tornou, aos 24 anos, o mais novo primeiro-ministro do Reino Unido em 1783): nenhuma concessão, exceto para as ameaças.
6. Central para o PDT, e em nenhum momento para o PT, foi e é a obra institucional de um governo, a única coisa que permite uma ação pública perdurar. Vivemos em meio aos destroços da última grande obra de construção institucional no Brasil: o corporativismo de Vargas. O PT aderiu à guerra contra o legado varguista e propôs colocar no vazio deixado por seu desmonte a humanização das instituições econômicas e políticas chamadas liberais. O PDT insiste no imperativo de inovação institucional na economia e política. E compreende que um produtivismo includente não se pode assentar nem no corporativismo de Vargas nem em seu sucedâneo pseudo-liberal. É outro nível de ambição.
7. A base social pretendida pelo PDT para sua proposta PARA país é uma aliança dos interesses do trabalho e da produção contra os interesses do rentismo financeiro e do extrativismo desindustrializante. Nas condições reais do Brasil de hoje, não pode ser a aliança estreita que sustentou o Vargas da última fase: do Estado com os trabalhadores organizados nos setores intensivos em capital. Ela tem de ganhar os emergentes, os produtores do Brasil profundo e a grande parcela da maioria pobre que já assimilou a cultura da auto-ajuda e da iniciativa. O PT nunca entrou nessa. Procurou construir na prática uma aliança enciclopédica e por isso mesmo fraca: transferências para os pobres, direitos adquiridos para as minorias organizadas, crédito subsidiado e casuísmos fiscais para os grandes empresários, juros altos para os rentistas. Necessário e difícil é atuar para abordar os brasileiros como agentes a equipar, não como beneficiários a cooptar. Essas sete diferenças justificam a tese de que o trabalhismo brasileiro que evoluiu a partir da liderança de Brizola é uma construção política genuinamente original, que não se pode entender como mera continuação de Vargas e que se contrapõe, de forma clara e contundente, à orientação do PT.
* ROBERTO MANGABEIRA UNGER É FILÓSOFO, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE HARVARD E FOI MINISTRO DA SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DOS GOVERNOS LULA E DILMA. ESTE TEXTO FOI ESCRITO COMO UMA CARTA EM RESPOSTA A UMA PERGUNTA SOBRE AS DIFERENÇAS HISTÓRICAS E ATUAIS ENTRE PDT E PT.
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